Véspera de feriado religioso em Porto Alegre, feriado religioso aqui em Kuala Lumpur. São duas da tarde e acabo de chegar em casa depois de ter passado a manhã inteira fotografando o Thaipusam Festival, a maior celebração hindu da comunidade indiana aqui da Malásia. O festival acontece a 15 km ao norte de Kuala Lumpur, nas Batu Caves, que uma vez por ano vira o palco da procissão.
Sabia que haveria muita gente por lá mas não tinha noção de quanto. Foi somente quando o trem cruzou a multidão e olhei pelas janelas que eu me dei conta do tamanho da encrenca. Olhando por ambas as janelas laterais do trem a única coisa que se via era um mar de cabeças e braços se agitando, algo assombroso.
Todo ano um milhão de pessoas aparecem por lá para prestar tributo ao Lord Murugan uma das milhares de entidades divinas da cultura indiana. A data cai sempre no décimo dia do calendário hindú, o que as vezes pode ser fins de janeiro ou início de fevereiro.
Saindo do trem a primeira coisa que você sente é o cheiro forte de incenso entrando no nariz e marejando os olhos. No caminho para o local aonde iniciam os rituais passamos por uma centena de barbeiros, todos zerando cabeças uma atrás da outra: crianças, velhos, homens e até algumas mulheres.
Todos estavam ficando carequinhas para, de acordo com a simbologia deles, se livrarem dos pecados. As montanhas de cabelos eram enormes, mas a raspagem não é obrigatório e muita gente prefere deixar o corte pra uma próxima vez.
As margens do córrego aonde tudo acontece quase não tem espaço pra tanta gente. Há milhares de curiosos e um exército de fotógrafos e cinegrafistas disputando no cotovelo as melhores imagens. Os devotos tomam uma longa ducha fria simbolizando a purificação e depois, vestidos com trajes típicos, eles são chamados um por um e cercados por outros que como eles também serão hipnotizados.
Depois do que eu vi hoje por lá conclui que pagar promessa no Brasil é mole. Subir aquelas intermináveis escadarias de joelho ou rezar ajoelhado no milho é fichinha perto do que acontece durante essa festa. Os devotos hindus se submetem a rituais um tanto que dolorosos (pelo menos aos nossos olhos) e levam realmente ao extremo a demonstração da fé.
Já havia assistido a documentários sobre o festival mostrando pessoas com pequenos potes de metal pendurados na pele por ganchos e bochechas transpassadas por lanças mas ver ao vivo uma coisa dessas é uma história bem diferente. Você se contorce todo ao ver aquele pedaço de metal dourado atravessando o rosto de uma pessoa. Não tem como não reagir desse jeito, é doloroso de ver isso acontecendo ali na sua cara. Eles, por outro lado, não dizem um "ai", não gemem, não tremem um músculo e, o mais incrível de tudo, não sangram. Nada, nem uma gota. O estado de hipnose é total.
(O vermelho no rosto em algumas fotos aqui não é sangue e sim um pó que misturado com água vira a tinta usada para pintar a pele)
Outros preferem cravar ganchos nas costas e puxarem pessoas que vem logo atrás segurando as cordas presas nesses mesmos ganchos. Imagino que alguns deles tomam alguma droga mística ou algo parecido que facilita o transe e ameniza a dor pois muitos tem os olhos esbugalhados de tal forma que parecem saltar do rosto. Eles caminham por cerca de 1km até chegarem ao início dos 272 degraus que levam a entrada das Batu Caves. Sem tomar fôlego eles iniciam a subida para lá em cima rezar e depositar dentro das grutas as oferendas que trazem.
Infelizmente não tive como acompanhar essa parte. Além de já estar cansado, o sol que até então havia ficado encoberto saiu do meio das nuvens com força total, queimando a moleira e acelerando o processo de putrefação dos mais de um milhão de pares de sovacos que lá estavam. E também, vale frisar, não existe banheiro suficiente na Malásia e em nenhum lugar do mundo pra toda essa gente. O ar em alguns pontos estava completamente podre, amenizado, é verdade, pelo cheiro de incenso. Confesso que em alguns momentos pisei em substâncias que preferi nem olhar pra baixo para ver do que se tratavam. Sabiamente guardei a câmera e peguei o trem de volta para casa para editar meu material e, óbvio, tomar um bom e longo banho.